Mar me quer


       







                                                  

                                                                                                                                                              


                                                                     

terça-feira, novembro 18, 2008

E se Obama fosse africano?

Por Mia Couto

Os africanos rejubilaram com a vitória de Obama. Eu fui um deles. Depois deuma noite em claro, na irrealidade da penumbra da madrugada, as lágrimascorriam-me quando ele pronunciou o discurso de vencedor. Nesse momento, euera também um vencedor. A mesma felicidade me atravessara quando NelsonMandela foi libertado e o novo estadista sul-africano consolidava um caminhode dignificação de África.

Na noite de 5 de Novembro, o novo presidente norte-americano não era apenasum homem que falava. Era a sufocada voz da esperança que se reerguia,liberta, dentro de nós. Meu coração tinha votado, mesmo sem permissão: habituado a pedir pouco, eu festejava uma vitória sem dimensões. Ao sair àrua, a minha cidade se havia deslocado para Chicago, negros e brancosrespirando comungando de uma mesma surpresa feliz. Porque a vitória de Obamanão foi a de uma raça sobre outra: sem a participação massiva dos americanosde todas as raças (incluindo a da maioria branca) os Estados Unidos daAmérica não nos entregariam motivo para festejarmos.

Nos dias seguintes, fui colhendo as reacções eufóricas dos mais diversosrecantos do nosso continente. Pessoas anónimas, cidadãos comuns queremtestemunhar a sua felicidade. Ao mesmo tempo fui tomando nota, com algumasreservas, das mensagens solidárias de dirigentes africanos. Quase todoschamavam Obama de "nosso irmão". E pensei: estarão todos esses dirigentessendo sinceros? Será Barack Obama familiar de tanta gente politicamente tãodiversa? Tenho dúvidas. Na pressa de ver preconceitos somente nos outros,não somos capazes de ver os nossos próprios racismos e xenofobias. Na pressade condenar o Ocidente, esquecemo-nos de aceitar as lições que nos chegamdesse outro lado do mundo.

Foi então que me chegou às mãos um texto de um escritor camaronês, PatriceNganang, intitulado: "E se Obama fosse camaronês?". As questões que o meu colega dos Camarões levantava sugeriram-me perguntas diversas, formuladasagora em redor da seguinte hipótese: e se Obama fosse africano e concorresseà presidência num país africano? São estas perguntas que gostaria deexplorar neste texto.

E se Obama fosse africano e candidato a uma presidência africana?

1. Se Obama fosse africano, um seu concorrente (um qualquer George Bush dasÁfricas) inventaria mudanças na Constituição para prolongar o seu mandatopara além do previsto. E o nosso Obama teria que esperar mais uns anos paravoltar a candidatar-se. A espera poderia ser longa, se tomarmos em conta apermanência de um mesmo presidente no poder em África. Uns 41 anos no Gabão,39 na Líbia, 28 no Zimbabwe, 28 na Guiné Equatorial, 28 em Angola, 27 noEgipto, 26 nos Camarões. E por aí fora, perfazendo uma quinzena depresidentes que governam há mais de 20 anos consecutivos no continente.Mugabe terá 90 anos quando terminar o mandato para o qual se impôs acima doveredicto popular.

2. Se Obama fosse africano, o mais provável era que, sendo um candidato dopartido da oposição, não teria espaço para fazer campanha. Far-Ihe-iam como,por exemplo, no Zimbabwe ou nos Camarões: seria agredido fisicamente, seriapreso consecutivamente, ser-Ihe-ia retirado o passaporte. Os Bushs de Áfricanão toleram opositores, não toleram a democracia.

3. Se Obama fosse africano, não seria sequer elegível em grande parte dospaíses porque as elites no poder inventaram leis restritivas que fecham asportas da presidência a filhos de estrangeiros e a descendentes deimigrantes. O nacionalista zambiano Kenneth Kaunda está sendo questionado,no seu próprio país, como filho de malawianos. Convenientemente"descobriram" que o homem que conduziu a Zâmbia à independência e governoupor mais de 25 anos era, afinal, filho de malawianos e durante todo essetempo tinha governado 'ilegalmente". Preso por alegadas intenções golpistas,o nosso Kenneth Kaunda (que dá nome a uma das mais nobres avenidas deMaputo) será interdito de fazer política e assim, o regime vigente, se verálivre de um opositor.

4. Sejamos claros: Obama é negro nos Estados Unidos. Em África ele é mulato.Se Obama fosse africano, veria a sua raça atirada contra o seu própriorosto. Não que a cor da pele fosse importante para os povos que esperam vernos seus líderes competência e trabalho sério. Mas as elites predadorasfariam campanha contra alguém que designariam por um "não autênticoafricano". O mesmo irmão negro que hoje é saudado como novo Presidenteamericano seria vilipendiado em casa como sendo representante dos "outros",dos de outra raça, de outra bandeira (ou de nenhuma bandeira?).

5. Se fosse africano, o nosso "irmão" teria que dar muita explicação aosmoralistas de serviço quando pensasse em incluir no discurso deagradecimento o apoio que recebeu dos homossexuais. Pecado mortal para osadvogados da chamada "pureza africana". Para estes moralistas - tantas vezesno poder, tantas vezes com poder - a homossexualidade é um inaceitável víciomortal que é exterior a África e aos africanos.

6. Se ganhasse as eleições, Obama teria provavelmente que sentar-se à mesade negociações e partilhar o poder com o derrotado, num processo negocialdegradante que mostra que, em certos países africanos, o perdedor podenegociar aquilo que parece sagrado - a vontade do povo expressa nos votos.Nesta altura, estaria Barack Obama sentado numa mesa com um qualquer Bush eminfinitas rondas negociais com mediadores africanos que nos ensinam que nosdevemos contentar com as migalhas dos processos eleitorais que não correm afavor dos ditadores.

Inconclusivas conclusões

Fique claro: existem excepções neste quadro generalista. Sabemos todos deque excepções estamos falando e nós mesmos moçambicanos, fomos capazes deconstruir uma dessas condições à parte.Fique igualmente claro: todos estes entraves a um Obama africano não seriamimpostos pelo povo, mas pelos donos do poder, por elites que fazem dagovernação fonte de enriquecimento sem escrúpulos.

A verdade é que Obama não é africano. A verdade é que os africanos - aspessoas simples e os trabalhadores anónimos - festejaram com toda a alma avitória americana de Obama. Mas não creio que os ditadores e corruptos deÁfrica tenham o direito de se fazerem convidados para esta festa.

Porque a alegria que milhões de africanos experimentaram no dia 5 deNovembro nascia de eles investirem em Obama exactamente o oposto daquilo queconheciam da sua experiência com os seus próprios dirigentes. Por muito quenos custe admitir, apenas uma minoria de estados africanos conhecem ouconheceram dirigentes preocupados com o bem público.

No mesmo dia em que Obama confirmava a condição de vencedor, os noticiáriosinternacionais abarrotavam de notícias terríveis sobre África. No mesmo diada vitória da maioria norte-americana, África continuava sendo derrotada porguerras, má gestão, ambição desmesurada de políticos gananciosos. Depois deterem morto a democracia, esses políticos estão matando a própria política.Resta a guerra, em alguns casos. Outros, a desistência e o cinismo.

Só há um modo verdadeiro de celebrar Obama nos países africanos: é lutarpara que mais bandeiras de esperança possam nascer aqui, no nossocontinente. É lutar para que Obamas africanos possam também vencer. E nós,africanos de todas as etnias e raças, vencermos com esses Obamas ecelebrarmos em nossa casa aquilo que agora festejamos em casa alheia.


Jornal "SAVANA" - 14 de Novembro de 2008

    Por Afonso Vaz Pinto :: 18:10 :: 2 Comentários

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